Esta edição do projeto coorganizado pelo Serviço Educativo do Jazz ao Centro e pelo Convento São Francisco / Câmara Municipal de Coimbra contempla concertos, conversas, exposições, oficinas e performances sonoras que vão decorrer em vários espaços do Convento São Francisco e no Salão Brazil, unindo as duas margens através da ponte entre dois dos principais espaços culturais do Centro Histórico de Coimbra.
Esta edição aprofunda algumas das questões já presentes nas anteriores, nomeadamente através de um renovado interesse na escuta do não-humano. A paisagem sonora da cidade continua a ter um carácter central e fundacional, mas as representações sónicas dos ambientes urbanos e as comunidades humanas passam a partilhar o lugar de escuta com todas as outras coisas que compõem o mundo.
É precisamente esse o enfoque de um dos trabalhos que merece destaque na presente edição do Dar a Ouvir. “A Natureza não reza” é a primeira grande exposição individual em Coimbra do artista Gil Delindro, nascido no Porto e premiado internacionalmente pelas suas instalações e esculturas, onde mistura elementos orgânicos e captações sonoras provenientes de paisagens adversas. Para Delindro, “dizer que a Natureza não reza, é acolher essa comunicação não-humana e dar-lhe um lugar de afeto, importância e reflexão. Em suma, trata-se de aceitar a nossa posição de vulnerabilidade, ao atribuirmos importância a algo que não pode ser totalmente compreendido através de conceitos verbais, sejam estes filosóficos, religiosos ou científicos”.
Abarcando vários trabalhos, já apresentados isoladamente em lugares como a Fundação de Serralves, o Festival Lisboa Soa e museus e festivais internacionais de referência, o carácter único desta exposição de Delindro, torna-a um dos motivos mais fortes para visitar o Convento São Francisco durante o período em que estará patente, de 18 de julho a 1 de setembro.
“Se o não-humano, tal como o subalterno, pode falar, como o escutamos?” A pergunta a que Gil Delindro tenta responder guia igualmente o trabalho da artista sonora eslovena Petra Kapš, que vai apresentar no Dar a Ouvir o resultado da residência artística que fará na Aldeia do Xisto da Cerdeira, na Serra da Lousã. Petra Kapš especializou-se no campo da geo-acústica, tendo um importante corpo de trabalho na confluência entre a arte sonora, a poesia, a performance e a arte radiofónica, desenvolvendo em vários contextos arquivos sonoros topográficos, intervenções no espaço público e explorações da memória através do som e da perceção.
A presença da artista eslovena é resultado de uma parceria que o Serviço Educativo do Jazz ao Centro mantém com a Associazione Culturale Interzona, uma organização italiana que organiza o Festival Liminaria, que possui muitas linhas em comum com o Dar a Ouvir. Assinalando a colaboração, Leandro Pisano, Presidente da associação, estará também presente e participará de uma roda de conversa em que explicará, enquanto curador, como se desenvolveu o trabalho de Petra Kapš no Vesúvio, precisamente antes da sua residência na Cerdeira.
Nesta edição, o Dar a Ouvir inaugura, também, uma outra parceria internacional, desta feita com a Fundación Cerezales Antonino y Cinia, instituição cultural espanhola sediada em Cerezales Del Condado, uma pequena localidade a poucos quilómetros de Léon (Espanha). Sob proposta de Luis Martinez Campo, curador da Área de Som e Escuta da Fundación Cerezales Antonino y Cinia, o Dar a Ouvir acolherá uma residência artística da dupla Raquel G. Ibáñez e Ignacio Martínez, que apresentarão uma iteração da sua recente criação “Invoca Vento”, estreada recentemente em Cerezales Del Condado.
O MS02 (Mobiliário Sonoro) volta a ser disponibilizado ao público, contendo sons da cidade prontos a saltar das suas gavetas. MS02 (Mobiliário Sonoro 02) é uma instalação interativa destinada à descoberta e interpretação de sons pertencentes ao Arquivo Sonoro do Centro Histórico de Coimbra (ASCHC), uma coleção de paisagens e marcos sonoros recolhidos pelo Jazz ao Centro Clube sob a direção artística de Luís Antero. Apresentado sob a forma de um armário e elemento pertencente a uma coleção de mobiliário-objetos sonoros desenvolvidos em torno do ASCHC, o MS02, a partir dos atos de abrir e fechar gavetas, propicia a exploração artística, lúdica e educativa do arquivo.
Num registo diferente, o Dar a Ouvir acolhe os concertos dos brasileiros Mbé & Lcuas e Cinemascope, do trio sueco liderado por Nils Berg, com Josef Kallerdahl e Konrad Agnas. Enquanto que Mbé e Lcuas apresentam “Rocinha”, um projeto que parte de uma pesquisa por fósseis tecnológicos, utilizados como ferramentas de comunicação com o objetivo de construir um presente-futuro. Produzido na favela que dá nome ao disco, o trabalho é uma descodificação sonora de experiências vividas, lidas e ouvidas ali, à margem da Zona Sul carioca, o Cinemascope de Nils Berg apresenta o cine-concerto Basilicata Dreaming, resultado da viagem que Nils Berg e o videasta Donovan von Martens fizeram a Basilicata, uma região montanhosa no calcanhar da bota (Itália). Graças a uma encomenda de 5 parques nacionais da região, ficaram 10 dias e fizeram as gravações de campo (áudio e vídeo) que viriam a dar origem a Basilicata Dreaming. Neste trabalho, Nils Berg (saxofones, flauta), Josef Kallerdahl (baixo elétrico) e Konrad Agnas (bateria) tocam ao vivo e interagem com as imagens projetadas atrás do trio. Vemos e ouvimos as senhoras a cantar enquanto lavam a roupa no tanque público, agricultores cantando temas tradicionais, etc.
O Dar a Ouvir será também casa para os “Mil Pássaros”, um projeto da Companhia de Música Teatral, feito a muitas mãos, com a colaboração de educadoras, auxiliares de educação e as crianças de 48 salas de Jardins de Infância do Município de Coimbra. Integrou ações de formação dirigidas às educadoras e celebrou o mundo dos pássaros promovendo e acolhendo atividades nos Jardins de Infância como a Oficina dos Pássaros ou PaPI – Opus 8, uma peça de música teatral. O Gabinete do Pássaro acompanhou todo o processo, contribuindo para a boa qualidade das práticas artístico-educativas junto da comunidade pré-escolar e sempre em perfeita harmonia com as equipas de mediação da Divisão de Educação e do Convento São Francisco.
A instalação “Mil Pássaros” é o resultado de um processo de partilha. Uma “inúmera mão” de crianças e adultos fez nascer pássaros na ponta dos dedos que depois se juntaram em “murmuração” visual e sonora afinada pelo desejo dum mundo melhor. Estes pássaros de papel, ou orizuros, realizados de acordo com a arte do origami são, segundo a tradição japonesa, símbolo de paz e felicidade. E, diz-se, os desejos cumprem-se quando se fazem mil orizuros.
Sobre o Dar a Ouvir
Dar a Ouvir é um projeto desenvolvido pelo Serviço Educativo do Jazz ao Centro, em coorganização com o Convento São Francisco / Município de Coimbra.
O projeto nasceu a partir de um convite do JACC ao paisagista sonoro Luís Antero, a fim de constituir o Arquivo Sonoro do Centro Histórico de Coimbra (ASCHC), decorria o ano de 2013, pouco tempo depois do Jazz ao Centro Clube ter encontrado casa no Salão Brazil.
O ASCHC parte do princípio de que as paisagens sonoras são importantes para a compreensão do modo como o som caracteriza um espaço ou lugar. Questões como “Quais os sons que a nossa cidade incorpora? Quanto deles já desaparecerem irremediavelmente? O que podemos aprender acerca da especificidade das comunidades de uma cidade (comunidades espaciais, bairros, comunidades profissionais, etc.) através da dimensão sonora?” têm estado no centro do trabalho do Arquivo Sonoro.
Em 2016, com o dispositivo interativo MS01 (Mobiliário Sonoro), o ASCHC passou a estar disponível ao público para uma exploração artística, educativa e lúdica. Fruto de uma parceria entre o Jazz ao Centro Clube e o Computational Design and Visualization Lab. do Cognitive and Media Systems Group, do Centro de Informática e Sistemas da Universidade de Coimbra, o MS01 esteve na base do aparecimento, em 2017, do Dar a Ouvir.
No contexto do Dar a Ouvir, o ASCHC tem sido fundamental para dar a conhecer a cidade de Coimbra a partir da cultura auditória, procurando sensibilizar para a escuta e para o som como possibilidade de descoberta e conhecimento, enquanto objeto social e criativo, num processo em que os sentidos se complementam.
Créditos fotográficos: João Duarte